quinta-feira, 19 de julho de 2007

Cumplicidades



Em plena serra, a meia hora de caminho da aldeia, por carreiros de cabras, um amontoado de pedras de granito, sem janelas e com as telhas toscas pelas quais o fumo da fogueira se esgueirava, transformado em refúgio.
Homem vivido, viajado, buscando-se no silêncio.
Serra mãe. Serra escolhida. Ali nascidos seus antecessores.
Descansar o olhar na paisagem. O Mundo a seus pés. Esticar os braços e tocar as nuvens. Quantas vezes, nas manhãs enevoadas, conseguia inverter a forma de olhar. Olhar de cima para baixo, as nuvens cobrindo o leito do riacho que nascia ali tão perto e serpenteava o vale.
Nesses dias sentia-se grande, o dono do mundo.
Dono do seu pequeno mundo. O cimo da serra.
Podia andar horas e horas vagueando por entre pinhos e urze, acompanhado apenas pela melodia das cigarras, grilos e melros.
Os melros que teimavam em debicar, grão a grão, cada uma das espigas da leira de milho. Tentava afasta-los com um espantalho, vestido com umas calças outrora, na sua outra vida, olhadas como sinal de prestigio, estatuto marcado no bolso de trás numa pequena palavra. Agora promovidas a vestir uns paus, que serviam de pernas ao pobre espantalho que tinha por chapéu um tacho. Um tacho já furado de tantas vezes poisar sobre as brasas para cozer as batatas com casca e dois ovos. Um manjar.
Sim! Um manjar! Só quem nunca saboreou batatas cozidas com casca, em lume feito de pinho velho, e regadas com azeite da tortura sofrida pelas azeitonas varejadas, das vinte oliveiras centenárias plantadas pelas mãos hábeis de seus avós; só quem nunca comeu esse manjar pode estar a torcer o nariz!
Mas os ditos melros, gostavam de debicar o milho das espigas. E ele gostava de os ver lá.
Eram a sua companhia.
Para se tentar enganar a si mesmo, batia de vez em quando, com um pau de azinheira, cajado de apoio nas caminhadas, no tacho de alumínio. Chapéu do pobre espantalho. Assustados com o barulho, num bater de asas uníssono, lá iam os melros voando para longe por uns momentos.

Depois, sentado na parede de pedra que sustentava as terras do socalco plantado, levantava os olhos de leve e mirava o horizonte.
Vê-los regressar um a um.
Era um ritual. Um acordo tácito. Com cláusulas definidas e aceites por ambas as partes. Homem e Melros.
De vez em quando chegava a questionar-se, se ao plantar aquela leira, e sempre aquela leira de milho, já não era intencional! Cumprir o ritual. Ano após ano via os melros passar… Chegava a pensar falar com eles.
Com quatro pancadas secas no tacho, afastava estes pensamentos. O bater das asas dos pobres pássaros interrompendo o manjar despertava-o deste mental filosofar.
Levantava-se. Enchia o peito de ar serrano, puro beirão e, embrenhando-se nos cabeços cheirando as maias das giestas, deixava o pensamento acalmar, esticava os braços e tocava o céu…
Amanhã voltaria o ritual.

BF




Fotos de minha autoria 

6 comentários:

papagueno disse...

Que lindo texto, também adoro passear pela serra, pena que a vida urbana não me deixe muitas oportunidades.
Parabéns pela música ando há que tempos que eu ando à procura dela e não a encontro.
Bjs

papagueno disse...

Ops... Desculpa baralhei um pouco a última frase mas acho que se percebe.
Beijinho

Dhyana disse...

Realmente há sítios que nos esvaziam a mente, as vezes nem sabemos onde ficam, mas depois de descobrir, tornam-se o nosso refúgio, a nossa toca.
Beijos...

rosa dourada/ondina azul disse...

Sempre o mesmo ritual a mesma paisagem e os melros.

É assim a vida no campo, solitária, mas recheada de muitas coisas...

Gasolina disse...

Coração Beirão, sei-o bem.

Este texto levou-me. Não sei se ao alto se lá atrás, onde me vejo outra.

Cada vez melhor.

Um beijo Papoilas dos Girassóis.

Shelyak disse...

São as coisas simples, depois de tantas outras complicadas, que sabem bem...
E a música que aqui tens hoje... conheço-a tão bem, do passado..que bom ouvi-la novamente.
Beijinho :)